quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012


Vida na expectativa
Wislawa Szymborska (1923 - 2012)

Vida na expectativa.
Espectáculo sem ensaios.
Corpo sem tirar medidas.
Cabeça sem reflexão.

Não sei o papel que desempenho.
Sei apenas que é o meu, intransmissível.

É já em cena que tenho de adivinhar
de que trata a peça.

Debilmente preparada para a honra que é a vida,
dificilmente aguento o tempo de acção que me é imposto.
Lá vou improvisando embora deteste improvisar.
Passo a passo tropeço no desconhecimento das coisas.
O meu modo de vida cheira-me a provincianismo.
Os meus instintos são crasso amadorismo.
O medo do palco, explicando-me, ainda me humilha mais.
Os factores atenuantes parecem-me cruéis.

Palavras e gestos sem regresso,
estrelas por contar,
o carácter – um casaco à pressa abotoado,
são os deploráveis efeitos desta urgência.

Treinar ao menos uma quarta-feira,
ou repetir uma quinta ao menos uma vez!
E já lá vem a sexta com um guião que ignoro.
Está como deve ser – pergunto
(com um pigarro na voz
pois nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).

È ilusória a ideia de que é só um exame rápido
realizado em sala provisória. Não.
Fico de pé diante do cenário e dou conta da sua solidez.
Impressiona-me o rigor de cada adereço.
o palco rotativo há já muito que funciona.
Já estão acesas até as mais distantes nebulosas.
Não tenho quaisquer dúvidas que se trata da estreia!
E, seja o que for que eu faça,
para sempre se transforma no que eu fiz.


Trad. Júlio Sousa Gomes

de Paisagem com Grão de Areia,Relógio d'Água, 1998







domingo, 29 de janeiro de 2012

Muito bem ... bem só.

Domingo Irei
Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros,
Contente da minha anonimidade.
Domingo serei feliz — eles, eles...
Domingo...
Hoje é quinta-feira da semana que não tem domingo...
Nenhum domingo. —
Nunca domingo. —
Mas sempre haverá alguém nas hortas no domingo que vem.
Assim passa a vida,
Sutil para quem sente,
Mais ou menos para quem pensa:
Haverá sempre alguém nas hortas ao domingo,
Não no nosso domingo,
Não no meu domingo,
Não no domingo...
Mas sempre haverá outros nas hortas e ao domingo!

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa

domingo, 22 de janeiro de 2012

Era uma vez o sonho.
Acordei mas ele ainda estava lá me dizendo que agora é tarde: uma vez que se aprende que as coisas em si são milagres carregamos dentro de nós a esperança, essa inabalável certeza no amanhã ...


Poema de Despedida
Mia Couto

Não saberei nunca
dizer adeus.

Afinal,
só os mortos sabem morrer.

Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser.

Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo.

Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos.

Agora 
não resta de mim 
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho 
todo inferno me vem a boca.

Nenhuma palavra
alcança o mundo,
eu sei,
ainda assim,
escrevo.

 



domingo, 11 de setembro de 2011

Minha mãe me abandonou para a vida.

Num pequeno instante, olhando os olhos de minha mãe, um olhar distante e inseguro, olhos quase-velhos e inocentes. Foi olhando dentro destes olhos que me vi, reconheci a mim mesma embora não fosse parte de mim. Era outra pessoa.
Dentro deles eu encontrei a troca, não mais a segurança pois tudo era aberto e incerto. Não havia amor incondicional ou compaixão, éramos adultas, por vezes meninas e no fim duas.

Eramos duas em suas escolhas, eu escolhi nascer daquele ventre, ela escolheu me dar a vida. Naquele instante, nem o acaso da natureza, nem o projeto de deus, nem os grandes sábios. Eramos vida: ela saíra de meu ventre, se alimentara em meus seios, dormira em meu colo e depois, na adolescência da vida, me trocara pelo mundo. A mim restou envelhecer e olhar aqueles olhos, perceber o quanto somos duas, o quanto ela me permite ser e apenas isso.

Sem agradecimentos, sem obrigações, sem amor eterno, sem culpa e sem medo. Ela, apenas, me deixou seguir e por isso não me pede nada em troca. Com isso me permite retornar em seus olhos e me deixar espantar pela vida, permite que eu continue sugando de seu corpo aquela seiva carnal. Aquilo que se faz vida apenas por ser. Nada mais.

Naquele pequeno instante, acredito que, cresci.

Para minha mãe, que me abandonou para a vida.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Sua benção Tales menino.

Abençõe a esta pobre alma de dinda.
Esta alma que nem sabe abençoar, que nem acredita no poder acima, que não sabe enxergar para além daquilo que sente. Que só consegue pulsar e amar na vida. Alma que abandonou a razão e que não consegue explicar o medo e pavor de olhar o seu rosto e imaginar que você veio para este mundo. 

E que mundo ... Perdão menino Tales mas aqui nem tudo é àgua pois os rios estão poluídos e o fluxo da razão destruiu a humanidade do homem. Os homens que aqui governam esquecem o sabor,  o calor e o som do seio da mãe e aos poucos se afastam do coração, e sem ele também esquecem que foram meninos e assim apagam de suas memórias as verdadeiras necessidades da vida. Esquecemos a necessidade do calor do outro, do abraço apertado. Cronos foi dominado e agora não podemos observar o detalhe pequeno do dia a dia que torna o instante presente o presente pra vida. 

Porém meu querido menino o que nos faz humanos é contradição, a mesma que nos torna únicos. E contraditoriamente, em tempos de vidas sem alma, ainda se vive. O único e maior valor que carregamos é o que pulsa em nossas veias, arrepia a nossa alma, umedece nossas roupas. O espanto, aquilo que inclina o homem para a filosofia, nos toma de assalto quando o acaso nos surpreende com a vida. Quando tudo parece morte, nasce um Tales. As pequenas mãos nos deixam indefesos do mundo, o silêncio, a respiração dos pequenos nos remete aquilo que queremos cuidar que é o outro. O outro somos nós mesmos, modificamos nossa re-existência para a sua existência . É aqui que aprendo com você. A me renovar quando me torno dinda, aquilo que só posso ser sendo.

Abençõe esta alma de dinda, devolva pra elas as suas palavras. Tome: modifique a sua existência.


domingo, 14 de agosto de 2011

Aos que me roubaram a alma.

E eles fazem isso, sempre me roubam o direito de não ser nada, de não querer nada. Eu grito, corro, fujo mas eles insistem em ficar e quando me dou conta a argamassa do muro derreteu. Com ela vão as minhas certezas e meu orgulho, minhas leis e razão, a culpa e misericórdia . Eles expõem minha vergonha em praça pública, escrevem "insegurança e medo" em minha testa. Rasgam minha roupa e me deixam nua. Sugam meu sangue, mergulham minha cabeça na bacia e me tiram o ar. Ao final eles me sangram a carne e quando estou quase-morta eu acordo em lençóis brancos com cheiro de flor. 

Me trazem comida, bebida. Acalantam meu corpo, lavam meus pés, aparam meus cabelos e unhas. Deito no colo e enquanto brincam com os meus caracóis exalam palavras de amor e perdoam meu defeitos. Insistem que meus pecados são milagres, que meus problemas são ternura e que a minha vida é mármore rosa de tão rara e preciosa mas possível de ser vista.

Não resta nada daquela que fui, dos gritos que dei e do desespero em não querer amar. Não sei mais nada sobre aquela que vivia sozinha, que não precisava de nenhuma voz de "boa noite" e nenhum beijo de "bom dia". Agora me configuro por aquilo que não me encontrei, que não sei explicar, que me faz incompleta e que me lança para a morte enquanto insisto na vida. Eu hoje penduro a minha alma no ombro de quem me ama.