terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Oração para a Natureza Morta.

Procurei na ponta do arco-íris; mas hoje não haviam tesouros.
Fabiana Melo Sousa

















Justo são aqueles que fazem os miseráveis, pois será deles o reino da prosperidade. Felizes aqueles que são pobres, afinal não há do que reclamar quando se tem aquilo que merece: a pobreza só atormenta quem aguenta. É questão de justiça não comer e questão de sabedoria esperar pra depois a bonança.

Felizes também são aqueles que estrupam pois deles será o reino dos céus, o céu dos estupradores, homens com gloria que ensebam mulheres com suas virilidades. Gloriosas também são elas que nasceram com esse dom de se deixarem usar e não se sentem vítimas dessa natureza: sábia natureza que trata de lançar diferença entre aquelas e eles. 

Puros e limpos são os claros, porque das claras até se duvidam, mas neles que se espelhem os que querem a salvação. Afinal quem nos salvou arregalou seus grandes olhos azuis, seus longos cabelos louros e pediu perdão. Lançou sobre todos nós a culpa mas no terceiro dia foi edificado: puro e virgem, casto e branco.

Castos sejam os do sexo oposto, pois o sexo do mesmo não é a minha imagem e semelhança, apenas asco: nada de puro desejo, carne que pulsa, vontade e prazer. Destas luxúrias o mundo já viveu bastante e nelas moram a razão da corrupção hoje vivida.

Vamos todos nós seguindo a humana natureza morta, que mata gente de fome, medo, horror e intolerância e justificamos a nossa barbárie no medo daquilo que não queremos enxergar, que está dentro de nós e que somos nós. 

Expurgamos os pecados, pagamos o preço: aprisionamos a liberdade.






quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012


Vida na expectativa
Wislawa Szymborska (1923 - 2012)

Vida na expectativa.
Espectáculo sem ensaios.
Corpo sem tirar medidas.
Cabeça sem reflexão.

Não sei o papel que desempenho.
Sei apenas que é o meu, intransmissível.

É já em cena que tenho de adivinhar
de que trata a peça.

Debilmente preparada para a honra que é a vida,
dificilmente aguento o tempo de acção que me é imposto.
Lá vou improvisando embora deteste improvisar.
Passo a passo tropeço no desconhecimento das coisas.
O meu modo de vida cheira-me a provincianismo.
Os meus instintos são crasso amadorismo.
O medo do palco, explicando-me, ainda me humilha mais.
Os factores atenuantes parecem-me cruéis.

Palavras e gestos sem regresso,
estrelas por contar,
o carácter – um casaco à pressa abotoado,
são os deploráveis efeitos desta urgência.

Treinar ao menos uma quarta-feira,
ou repetir uma quinta ao menos uma vez!
E já lá vem a sexta com um guião que ignoro.
Está como deve ser – pergunto
(com um pigarro na voz
pois nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).

È ilusória a ideia de que é só um exame rápido
realizado em sala provisória. Não.
Fico de pé diante do cenário e dou conta da sua solidez.
Impressiona-me o rigor de cada adereço.
o palco rotativo há já muito que funciona.
Já estão acesas até as mais distantes nebulosas.
Não tenho quaisquer dúvidas que se trata da estreia!
E, seja o que for que eu faça,
para sempre se transforma no que eu fiz.


Trad. Júlio Sousa Gomes

de Paisagem com Grão de Areia,Relógio d'Água, 1998