domingo, 31 de julho de 2011

Mataram a mendiga louca que vivia no lixo.


Mataram a mendiga louca que vivia no lixo.
Para Dalva, a louca.

Mataram a mendiga louca que vivia no lixo. Bem feito: quem mandou viver? Que sentido tem fazer poesia dos restos enquanto todos nós queremos esquecer o lixo que somos. Reciclamos, separamos vidros, plástico e orgânico. Pra quê? Pra não sentirmos culpa  pois no fim tudo vira uma coisa só nos lixões públicos.
Mas o que isso me interessa? Gramacho é a estação final da linha de trem, um lugar longe de nós – nós que somos tão civilizados, limpos e conscientes com responsabilidade social.

Nos indignamos nas salas escuras do cinema: aplaudimos de pé e emocionados a vida - tanta vida que ela nos trouxe, pois de vez em quando é bom lembrar que somos humanos -  e após o “the end”, passamos longe dos hospitais públicos, que são públicos assim como o lixão de Gramacho e por serem públicos recebem os restos de lixos dessa humanidade sem humanidade. E foi lá, num hospital público que ela morreu.

Os hospitais públicos, os sanatórios públicos, as cadeias públicas e os lixões públicos são lugares podres: sujos, fedorentos, barulhentos e coloridos: não são cinzas como os prédios que cortam os céus das cidades e os shoppings centers (nome que nem tenho direito de escrever no plural). São vivos, pulsam tudo que sai de dentro de nós: as nossas fezes, suores, nossos gritos, lamúrias e desesperanças que estão depositados nestes lugares cheios de vida. A vida que queremos esquecer. Esquecer que na verdade somos uma panela de pressão pronta para gritar, para dizer que somos contradição, horror e feiúra, mas que somos esperança: esta que não se compra, que não se pode arrancar, que Pandora deixou na caixa e que buscamos a todo tempo.

Mataram a mendiga louca, foi queima de arquivo, ela era humana demais para viver em tempos de barbárie. O enterrro foi sexta. Se fuderam: enraizaram a poesia do mundo.



Um comentário:

  1. Sobre o último post no seu blog.

    “Enraizaram a poesia”. Essa frase já é, com o perdão do pecado metafísico, ontológica. Não porque ela saiu da pena de uma poetisa (sei que não devo usar mais essa palavra) velha e brocha que toma chá na Academia Brasileira de Letras, mas sim porque a raiz da qual a autora se refere teve como semeadura, uma mendiga!
    Hoje os moradores de rua criam modos de vida que contradizem o belo sonho da sociedade brasileira. Um valor como privacidade esta’ desprezado por eles. Tudo se faz na rua ao alcance dos olhos alheios numa vida publicitada por inconscientes em movimento, por suas energias criativas. E se “a rua torna todos iguais”; os mendigos estão os cínicos contemporâneos do ambiente geográfico carioca.
    E’ como se a fuga do habituario social oficial fosse possível. Ao passo que o desejo de boa consciência chora, se deprime e senta no divã da psicanálise, por não se ajustar aos padrões, os moradores de Rua do Rio de janeiro trazem a imagem do fora. Cada um tem sua desterritórializaçao que acontece com intensidades tais que ocupam um bom tempo da Secretaria de Ordem Publica da Cidade. Isso não seria uma forma de policiamento da vida e suas potências?
    O cão, Diógenes, O cínico é o diabo. Não porque ele chama a massa a marchar do seu lado para uma revolução. Ele luta sozinho. Combate lentamente, e’ como o verme que corrompe pouco a pouco a pele, a superficialidade social. Seus modos de vida em cada gesto dizem: “Que se foda os valores” e continuam a desconstruírem o que séculos de repetição construiu nos cérebros.
    Não. Não mataram apenas a mendiga, “enraizaram a poesia”. Mataram a ameaça, a prova vivificada que os modos de vida da sociedade burguesa podem sim ser contrapostos por outros modos de inventar a vida.
    Bela postagem minha amiga.

    ResponderExcluir